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Ter ou ser? Na dimensão da leitura

Written by Helton Bezerra

Olá, bom dia! tudo bem? Mais um excelente texto de Rodrigo.

Mas e a leitura? Quem ela nos torna? O que ela faz de nós? Vale muito a leitura, mas antes de tudo, quero saber sua opinião! O que achou?

Um forte abraço e feliz dia, Helton

Ter ou ser?

A flor pende inerte sobre o solo, suas pétalas destruídas, seu perfume no último suspiro a flutuar sob o ar, carregado pelo vento. Deste modo a cena de destruição da natureza pelo homem segue seu curso sombrio. Mas por que o homem segue esse caminho destrutivo? Acaso não é ele natureza?

Na antiguidade grega na fronte do Oráculo de Delfos, do deus Apolo, deus solar, havia inscrito – “Conheça-te a ti mesmo e conhecerás os deuses, a natureza e o universo.”. Há nesta imagem oracular um símbolo. O pórtico é por excelência uma abertura, um limiar entre dois mundos, o externo e o interno, mas também a união de ambos. O conselho délfico permanece no alto. O que a imagem nos diz é que aquele que entra em si mesmo caminha na direção da claridade, representada por Apolo.

Pois bem, mas o que significa isso? Desde o inicio da filosofia, da poesia, da mitologia a linguagem buscava talhar sinais sobre a sutileza existencial. Cada palavra cheia de substância, como um cálice cheio de vinho. Observemos algumas palavras e suas etimologias.

Filósofo, do grego, significa mais profundamente – aquele que ama a luz da sabedoria. Na palavra grega sophos, o phos, significa luz, donde o sábio é aquele que é luminosidade. Na verdade aqui está simbolizado a dimensão contemplativa do Ser. Portanto, sábio é aquele que é iluminado, aquele que realizou o oráculo de Delfos, que adentrou a dimensão do autoconhecimento, muito bem representada por Sócrates.

Teoria, outra palavra grega, significa olhar sobre o divino, olhar sobre a luz. Teoria é uma junção de divino e olhar. O fenômeno luminoso é fecundo de símbolos e metáforas na literatura, dando medida entre o visível e o invisível.

Por fim, deus, divino, palavra de origem indo-europeia, cuja raiz –div significa luminosidade, luz. Quando se fala em deus, no divino, na verdade a palavra em si significa apenas isto – luminosidade. Mesmo a palavra demônio é de mesma origem etimológica.

E natureza, outra palavra grega, que chegou até nós através do latim natura, significa – o brotar luminoso da vida. A palavra grega para natureza é – Phýsis, e tem em sua origem a mesma palavra phos, que aparece em sophos, o sábio. Natureza é o brotar da luminosidade, sua manifestação.

O que tudo isso significa? Significa que o divino, a natureza, o sábio e seu olhar sobre o divino estão interligados. O sábio é de fato aquele que se autoconhece, conhecendo o divino, a natureza e o universo. Por isso o sábio ama a natureza e não a destrói. Só destrói a natureza aquele que permanece inconsciente de sua própria natureza. Aquele que está dividido entre Sujeito e Objeto.

Não podemos iniciar a reflexão sem referenciar uma frase de Karl Marx – “O homem deixa de SER e manifesta sua vida na medida em que passa a TER e sua vida se torna mais alienada.”. Essa frase é fundamental, pois está dimensionando o modo da sociedade contemporânea que se funda no consumo. Não se trata, contudo, de comunismo, marxismo, mas, sim, de perceber os caminhos da sociedade atual, que caminha entre o TER e o SER.

Erich Fromm no livro “Ter ou Ser?” nos convida a refletir  sobre o binômio – ter e ser, apresentando alguns pequenos trechos da literatura.

Flor nascida nas fendas de um muro,

Arranco-te e a raiz da fenda em que estás

E te contemplo toda, em minha mão.

Pequena flor – se eu entendesse

Quem és, raiz e pétalas, flor inteira,

O mistério de Deus e do homem eu saberia.

(TENNYSON).

 

Olhando eu cuidadosamente,

Vejo a nazuna florindo

Em meio à sebe!

(BASHÔ).

 

Andava eu pelo bosque

Inteiramente só,

Ao léu, por nada

Pensar ou querer.

 

E percebi na sombra

Uma florzinha só,

Clara como as estrelas

Ou dois olhos brilhantes.

 

Fiz menção de arrancá-la,

Quando a ouvi dizer, suavemente:

Será para que eu morra

Que devo ser quebrada?

 

E tirei-a do chão

Com todas as raízes

E ao jardim conduzi

Para junto do lar.

(GOETHE)

Erich Fromm ilustra através destes três poetas uma ação entre o Ter e o Ser. Dirá que Tennyson representa o cientista ocidental que procura a verdade mediante o desmembramento da vida. Tennyson necessita desmembrar a vida como forma de possui-la. Bashô por ser turno representa o sábio que quer VER, e não apenas olhar para a flor, tornando-se UNO com a flor, deixando-a viver. E Goethe estaria entre os dois, sentindo o impulso de colher a flor, tal como o cientista, mas tomando-a para replantá-la junto ao lar. Bashô e Goethe representando a dimensão do SER. Tennyson a dimensão do TER.

A ação de possuir, segundo Fromm, guarda duas dimensões. O TER caracteriológico, que significa o TER que caracteriza, ou seja, o TER que caracteriza o sujeito, como por exemplo, o sujeito tem uma casa, logo ele se torna dono da casa, visto que a possui. Nessa forma de TER o homem busca reter e conservar o que não é natural. Sou à medida que tenho, portanto, necessito ter cada vez mais – essa é a premissa do TER caracteriológico. Essa forma de TER está em desarmonia com o SER. A segunda dimensão do TER é o TER existencial. O TER existencial não está em desarmonia com o SER. Todo ser humano necessita TER existencialmente coisas para sobreviver. Isso se refere ao corpo, ao alimento, habitação, vestuário e instrumentos necessários a satisfazer necessidades.

O esforço de Fromm é demonstrar a diferença entre fluir com a existencial, ou seja, SER, que passa por um modo do TER, que é constitutivo da existência e por isso não está em desarmonia com o SER, e o estar preso, escravo do segundo modo do TER, que não está de acordo com o SER, visto que interrompe o fluxo da vida. É extremamente sutil. Aqui cabe a metáfora da luz. A luz representa o SER que flui, ilumina, aquece, dá vida, penetrando em todas as coisas. Encarcerar a luz é privar a luz do seu fluxo natural, de modo que a vida se torna desiquilibrada e o excesso de luz pode transbordar como hybris, que para os gregos antigos significava sair da medida, cometer uma ação não natural, o que hoje psicologicamente seria uma forma de patologia.

Platão diz que a filosofia é o remédio para a mente, pois que sua dialética, seu jogo abre caminho e ventila a mente, tornando-a mais leve. Filosofia aqui é entendida como autoconhecimento, que passa pela reflexão, pela contemplação, por adentrar um silêncio e uma solidão. Condições que estão sumindo do mundo contemporâneo e que exige um esforço muito grande por parte dos que buscam trilhar o caminho de retorno a sua origem metafisica.

Por fim, gostaria de encerrar a reflexão trazendo uma reflexão sobre a leitura.

A leitura encerra em si a dimensão do SER e do TER. Ler na dimensão do TER é apenas acúmulo de material, de informação, de conhecimento. É tornar o conhecimento uma forma de propriedade. Isso é o que é feito nas escolas, nas universidades. O que chamo de leitura de código de barras. Uma leitura puramente consumista, que procura reproduzir ou apenas gozar.

A leitura na dimensão do SER é uma abertura, um diálogo criativo, onde seu organismo ganha profundidade, grandeza, mas não como posse, e, sim, como EXISTÊNCIA. Você não possui o conhecimento. O conhecimento se realiza existencialmente em ti, como na linda e melancólica cena de Khadji-Murát, de Tolstói, onde ao ver a flor o homem luta na tentativa de arrancá-la e, por fim, percebe que após destruir tudo o homem ainda vê a vida desabrochar resistente, afinal ali está a flor tenazmente enraizada na existência. Assim pode ser o homem se despertar para a existência. Será ele como a flor desabrochando na existência.

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Helton Bezerra

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